história de um homem como nós


Por Baptista-Bastos
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Álvaro Monte era uma montanha de homem, de alegria esfuziante, de ironia cáustica e de uma solidariedade exacta nascida de uma infância paupérrima. Conheci-o nos anos da brasa, apresentado por Manuel da Fonseca, seu conterrâneo, na cervejaria Solmar. O dia estava embatente de sol e de calor, o que não impedia o Álvaro de ir para uma manifestação, do Rossio a Belém. Ele tinha pouco mais de 20 anos, possuía a moral proletária do trabalho, era um metalomecânico aplicado e gostava, por igual, de Jesus e de Lenine.

O Manuel da Fonseca apreciava muito conversá-lo, entre umas e outras de canecas de cerveja, e nunca ouvi, como da boca deste alentejano sorridente, histórias de alentejanos como ele as contava. Pertencia a um coro de cante, organizado em Algés por alentejanos desenraizados, era grande leitor, sobretudo de escritores neo-realistas, afável e prestável, mas quando se zangava a ira transformava-o, e a imponência da estatura era intimidante.

Gostava muito deste homem sábio e pausado no falar, de sotaque carregado, e olhar guloso para as mulheres que passavam. Trabalhou durante muitos anos numa grande oficina, cujo proprietário, brasileiro de torna-viagem, astuto e forreta, acumulou enorme fortuna. Quando se cansou de contar o dinheiro, entregou a oficina a um sobrinho, gabiru do Alto do Pina, dado ao póquer e ao burro americano, que deu cabo da herança em três tempos.

Parece uma história de Camilo Castelo Branco, mas não é, não, senhor. Como tantas outras haverá. O vendaval do 25 de Abril, a impreparação de muitos e o oportunismo de outros, a revanche dos que sobrenadaram, aguardando o propósito, levou a que o gabiru do Alto de Pina promovesse a "rescisão amigável" dos contratos. Álvaro Monte foi à vida. A princípio, estar de licença permanente agradou-o, não muito mas um pouco. Os dias varam os dias, os meses e as semanas. Procurou trabalho e, claro!, não o encontrou. A época não era propícia ao companheirismo, e Álvaro dera muito a cara e o coração em acções sindicais e outras, de monta protestatária.

Na emergência, foi para trabalhador da Câmara, como "almeida", e, dizem os camaradas diários, era um homem incansável. Solteirão, encontrou mulher numa costureira de uma importante loja de roupas, e, durante uns tempos, parecia amainado no desgosto de não conseguir trabalho no ofício que adorava. Deu-se ao álcool e ao desleixo. Foi despedido, após desculpas e encobrimentos inverosímeis.

Já não tinha direito a subsídio ou a qualquer outro apoio social. Enquanto foi vivo, o Manuel da Fonseca e outros amigos ajudaram-no conforme podiam. A mulher deixara-o, cansada do desmazelo e do desamparo. Ele andava pela cidade, como um círio fúnebre, na caminhada de que mais gostava, entre o Rossio e o Terreiro do Paço. Sentava-se num dos bancos de pedra, a ver correr as águas do Tejo, numa solidão mais viva do que o sangue, envolvido em melancolias e pensamentos.

Como bebia em excesso, ocasionalmente tombava nas ruas, era objecto do escárnio de miúdos, e, por vezes, agredido por outros miseráveis. Foi arrancado a esse infortúnio por um dos editores de Manuel da Fonseca, também de Santiago do Cacém, que lhe arranjou um posto de embalador de livros. Mas as coisas não eram assim tão simples. Ele sonhava com o seu velho ofício, com os ruídos característicos da oficina, com as tardes passadas na Solmar, com os amigos, soltando enormes gargalhadas de uma felicidade completamente perdida.

Emagreceu, parecia um espeque, as pessoas mais conhecidas evitavam-no, ele percebia não ser estimado como outrora, tornou-se mendigo, foi preso duas vezes por indecoro e sujidade, dormia aqui e acolá, já nada o interessava. Impressionante a sua capacidade de resistência à fome, à miséria, à desgraça. Impediam-no de entrar, pelo mau cheiro e pelo descuido, nos locais que frequentara e onde fora recebido com agrado e estima, e envolvia-se em desordens que se tornaram constantes.

Anteontem tropeçou, depois de cambalear como um sonâmbulo pela Avenida da Liberdade, um carro foi-lhe para cima, ele ainda encontrou forças para pedir: "Digam ao Manuel da Fonseca que está tudo bem!" Esta era sua única rescisão amigável.

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