daqui fala o morto

Por Tomás Vasques

O primeiro resultado visível foi obrigar um não-governo, em trânsito para a tumba, a apresentar-se na Assembleia da República, a encenar uma comédia.

Vivemos tempos políticos tão burlescos que o seu retrato, quer no caricato de cada pormenor, quer no ridículo de cada um dos personagens e de cada uma das situações, exige mais uma narrativa extensa, minuciosa, a sair do talento literário de um grande escritor do que de comentários políticos, em cima da hora, que pela pressa e singeleza se desfazem na espuma dos dias.

Perante uma crise política grave, aberta com a demissão do ministro das Finanças, que de facto governou o país durante os últimos dois anos, o senhor Presidente da República, em prol do que considera ser a "estabilidade política" necessária à nossa condição de país "intervencionado", apresentou aos portugueses, num discurso televisivo solene, e em tom grave, para resolver os problemas da governação, uma não-solução, a qual mereceu de imediato o aplauso de todos os condes de Abranhos, da política e do jornalismo, que povoam as nossas praças há pelo menos dois séculos. Alguns, menos reservados, gritaram: "Temos Presidente", sinal evidente do marasmo apodrecido em que tudo isto se afunda. O primeiro resultado visível foi obrigar um não- -governo, em trânsito para a tumba, a apresentar-se na Assembleia da República, na sexta-feira, a encenar uma comédia do tipo "Daqui Fala o Morto", como se estivesse a falar no Estado da Nação.

Quando um Presidente da República abandona o seu papel de árbitro do sistema político e abdica publicamente, em várias ocasiões, da possibilidade de usar poderes que lhe estão conferidos, como a dissolução da Assembleia da República e a convocação de eleições antecipadas, em nome uma "estabilidade política" que não incomode os mercados e a troika, está apenas a transmitir ao governo, comprovadamente irresponsável e incompetente, que faça o que fizer, aconteça o que acontecer, o alto magistrado da nação "não é um problema"; quando um Presidente da República se assume como patrono desse governo, como se tivesse sido escolhido por si, e vai à Assembleia da República, no dia 25 de Abril, dar-lhe o seu total apoio e zurzir na oposição, e sobretudo no Partido Socialista, obviamente que transmite que o inquilino de Belém não era um estorvo a um governo que, qual cadáver em decomposição, se desfazia num mar de intriga, de contradições e era origem de todas as instabilidades políticas; quando um Presidente da República age assim, quase sempre em silêncio, conivente com o descalabro a que assistíamos diariamente, permite que os personagens deste enredo tomem o freio nos dentes mal o mandante, Vítor Gaspar, saltou do barco. Um, Paulo Portas, viu a sua oportunidade de dar o "golpe do baú" e o outro, Passos Coelho, cuja noção do exercício do poder, democraticamente conferido, se traduz por "ir ao pote", bebeu o cálice de veneno que o líder do CDS-PP lhe serviu, até à última gota, para não ter de sair deste filme das "mil e uma noites" e voltar ignorado e vilipendiado ao seu apartamento de Massamá.

O senhor Presidente da República, um dos principais responsáveis pelo estado a que isto chegou, cuja mesquinhez o faz reagir mais em função de "ofensas" pessoais do que da difícil vida dos portugueses ou da deterioração da situação política, não tem autoridade política para, agora, depois de empenhar todos os créditos neste governo, querer que os socialistas o salvem, a ele e a este governo, do pântano em que se afundaram. E muito menos fazer das próximas eleições, inevitavelmente antecipadas, e da democracia, um fantochada alicerçada num "pacto", a médio prazo, entre os partidos do "arco da governabilidade". A não-solução apresentada pelo senhor Presidente da República é apenas um compasso de espera para a marcação de eleições antecipadas. E quanto mais tarde pior.

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